Manifesto BDSM

julho 18, 2008
"O objetivo deste texto não é ditar sistemas ou lógicas inalteráveis. Muito pelo contrário, ele é uma contribuição para o debate e tem a intenção de provocá-lo. Trata-se de uma proposta inicial e mínima de uma plataforma de posições a serem potencialmente defendidas pelo BDSM brasileiro.

Este texto trabalha com alguns conceitos que são descritos de maneira superficial, como referência, abaixo.

Subcultura: Na sociologia, antropologia e estudos culturais, uma subcultura é um grupo de pessoas com características distintas de comportamentos e credos que os diferenciam de uma cultura mais ampla da qual elas fazem parte. A subcultura pode se destacar devido à idade de seus integrantes, ou por sua etnia, classe e/ou gênero, e as qualidades que determinam uma subcultura como distinta podem ser de ordem estética, religiosa, ocupacional, política, sexual, ou por uma combinação destes fatores.

Troca de poder: No BDSM, o termo “troca de poder” está associado à entrega por parte da submissa de sua autoridade no que diz respeito à tomada de decisões (seja apenas em uma cena, ou por toda a vida) em troca da concordância do Dominador em ser responsável por sua felicidade e saúde.

Em um nível psicológico, muito das cenas BDSM envolve poder e dominação, particularmente a troca de poder, onde uma pessoa entrega voluntariamente sua autonomia pessoal. Isto pode se dar desde o ato de se chamar a outra pessoa de “Mestre” ou “Senhora” em uma cena com duração de dez minutos até um encoleiramento formal e com testemunhas, com contrato vitalício através do qual se administre a vida da submissa. Todas essas práticas são consensuais entre os que estão vivenciando a experiência.

Fetichismo: Fetichismo sexual é a atração sexual por (a) objetos materiais e terrestres, enquanto que na verdade a essência destes objetos é inanimada e assexuada. Partes do corpo também podem ser associadas a fetiches sexuais (também conhecido como parcialismo), onde a parte do corpo preferida pelo fetichista tem precedência sobre o dono do mesmo.

Identidade sexual: É o conjunto de características sexuais que diferenciam cada pessoa das demais e que se expressam pelas preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo, necessárias para a realização sexual e/ou afetiva do indivíduo.


Manifesto por um movimento BDSM

1-) BDSM como identidade sexual

Identidade é diferente de escolha. É relativamente simples entender que não escolhemos ter uma identidade sexual ligada à idéia da troca de poder afetiva ou erótica como alguém escolhe uma marca de detergente ou um canal de televisão. Apenas nos identificamos de maneira afetiva e sexual com relações que estejam fundadas em práticas relacionadas ao universo BDSM.

É impossível falar em uma identidade sexual única e coerente no tempo como regra absoluta para todos os seres humanos que componham um coletivo. Apesar de notarmos elementos plásticos em nossa sexualidade, grande parte dela varia de acordo com as novas experiências que vamos adquirindo ao longo da vida. A caminhada da descoberta sexual é riquíssima para qualquer um e uma das maiores experiências sensoriais que temos ao longo da vida. Nesse sentido há uma pequena “história da sexualidade” dentro das histórias pessoais de cada um de nós.

Mesmo assim, é possível falar em identidade sexual como parâmetro de identificação e agregação de indivíduos que comungam de preferências compatíveis. Tanto como não é certo que alguém que seja um homossexual continuará identificando-se assim por toda a vida, é certo, por outro lado, que reconheçamos que a identidade sexual homo erótica é válida enquanto categoria que define as fronteiras de um grupo social.

Da mesma forma, é possível e correto falar em identidade sexual vinculada à troca de poder e/ou ao fetichismo de qualquer natureza. E isto não engessa nossa sexualidade ou a limita de qualquer maneira: a identidade sexual não estabelece uma barreira comportamental que force alguém a só fazer e pensar sua sexualidade de maneira a reproduzi-la indefinidamente. Um sujeito pode identificar-se com as duas pontas opostas de uma relação de troca de poder e ser um switcher. Isso é tão natural quanto alguém que se identifica com homens e mulheres, sendo um bissexual. O componente homo erótico não abandona o bissexual em seus momentos de heterossexualidade. O componente das trocas de poder também não abandona alguém que se identifica com o movimento BDSM só porque ele também está aberto a outras vivências e outras identidades. A sexualidade é absolutamente subjetiva, como são os sentimentos e motivações humanas fundamentais. O que nos importa é o que reivindicamos livremente como nossa identidade sexual.


2-) BDSM como um movimento subcultural

É necessário reconhecer a necessidade de afirmar o BDSM como um movimento, com a mesma legitimidade dos movimentos sociais reivindicatórios de libertação sexual, como o movimento de mulheres ou o movimento GLBT. Muito embora haja um sem número de especificidades que o tornam único, o BDSM tem todas as características de agrupamento social, com demandas por espaços de vivência, discussão e reivindicação de uma nova abordagem em relação à minorias sexuais para as quais o preconceito ainda é opressivo.

O BDSM possui uma identidade única e é uma subcultura urbana, com linguagem, estética, condutas unificadoras e grupo de indivíduos que se reivindicam como praticantes de uma forma de amar e obter prazer absolutamente específica em relação à média da sociedade. Há grupos sociais e indivíduos que voluntariamente se identificam com a prática da troca de poder afetiva ou erótica e que devem ter respeitado seu legítimo direito à organização, anônima ou não, no curso dessa experiência. Mais que isso, o movimento BDSM carrega em si demandas de um segmento específico da sociedade para encaminhar, como a não criminalização de suas práticas e o combate ao preconceito e conservadorismo sexual.

Trata-se ainda do movimento que congrega dentro de si um conjunto importante de minorias sexuais discriminadas, que tem nesse espaço coletivo uma chance de encontrar vazão a seus anseios, dúvidas, além de apoio, espaço de convivência e ajuda profissional entre pares. Por isto, enquanto movimento, o BDSM deve aceitar sempre e de braços abertos os fetichistas de qualquer natureza, mesmo que não necessariamente suas identidades sexuais estejam especificamente ligadas à troca de poder entre seres humanos.


3-) BDSM e saúde

Muitas vezes os sentimentos e a atração pelo BDSM levam o indivíduo a se questionar com relação a sua saúde mental e até mesmo física. A criação, religião e educação são os fatores influentes, combinados com o conservadorismo sexual, a falta de informação sobre o assunto, legislação ultrapassada, preconceito, abordagem histérica da mídia e um enorme vazio na educação sexual geral.

Ter uma identidade sexual BDSM ou fetichista não é “errado” ou “doente”. No entanto, há uma série de avanços ainda necessários para que haja pleno respeito em relação a estes desejos ou condutas eróticas. Para os praticantes não há qualquer conflito direto com os aspectos gerais sociais e legais e o comportamento politicamente correto. Nós defendemos uma sociedade capaz de entender isso.

BDSM não é doença; está, antes de mais nada, associado ao erotismo e à expressão da sexualidade de cada um, o que normalmente se dá através da realização de fantasias e atendimento a necessidades e desejos sexuais saudáveis.

Defendemos um BDSM plenamente antenado com as questões de saúde psicológica e física da atualidade, compatível com uma vida normal e com nossa aceitação como indivíduos livres e saudáveis garantida.


4-) BDSM e o machismo

O movimento BDSM combate ideologicamente qualquer vinculação entre o que é subcultura BDSM e o que são criações ficcionais que reivindiquem o machismo ou a superioridade natural do sexo masculino além do espaço da vivência privada e da consensualidade. Estes elementos constituem-se em modalidades de opressão e não numa vivência BDSM antenada com ideais libertários e contrários a ideologias de promoção do ser humano e escolha voluntária de seu papel na relação BDSM.

Não legitimamos ou concordamos com o machismo ou com qualquer outra forma de opressão sobre qualquer minoria social. Pelo contrário, sendo nós mesmos uma minoria sexual altamente incompreendida e estigmatizada, estamos ao lado de todo e qualquer movimento libertário que tencione vivermos em uma sociedade onde não haja diferenciações ou limitações preconceituosas e conservadoras. Repudiamos o machismo, a violência doméstica e qualquer forma de preconceito.


5-) BDSM e a liturgia

As práticas unificadoras que conhecemos no meio BDSM como “liturgia” são um aspecto central da vivência de boa parte da comunidade. O movimento não nega estas experiências, nem seu valor. Contudo, é impossível e indesejável definir que elementos são ou não são litúrgicos, até pelo grande nível de subjetividade do tema. Por isto a melhor maneira para que se mantenham as tradições de grupos que as compartilhem dentro da cena BDSM são as organizações destes indivíduos em Casas.

Casas BDSM são instrumentos de organização interna da cena BDSM que compartilham maneiras de realizar as práticas, formas específicas de conduzir suas vivências e de transmitir seu conhecimento e postura.

Não há qualquer incompatibilidade entre a existência de liturgias e a livre entrada de pessoas no meio BDSM: é facultado a qualquer um defender suas posições ou conviver em sub-grupos que as reconheçam, mesmo que também seja assegurado o direito inequívoco de quem prefere vivenciar experiências de troca de poder baseado em outros critérios.

As Casas BDSM são espaços opcionais e reconhecidos, onde a liturgia é vivida pelos que assim querem. Mais que isso, elas são unidades reconhecidamente importantes da organização do BDSM e devem ter sua vivência e tradições respeitadas pelos demais membros da comunidade.


6-) BDSM e especificidades brasileiras

O movimento BDSM desenvolve-se de maneiras diferentes em cada país ou região. Acreditamos em uma fórmula específica para seu desenvolvimento no Brasil e, mais que isso, em cada região do Brasil, pelas dimensões continentais e a grande diversidade cultural de nosso país.

Em que pese nos recusarmos a importar fórmulas prontas, as experiências do movimento BDSM em outros países são uma referência importante para que, através de debate e experimentação, possamos encontrar um caminho próprio. Assim, pretendemos que haja autonomia e respeito em relação às múltiplas formas de ver ou organizar o BDSM regionalmente.


7-) BDSM e lógicas de marginalização ou guetização

Não acreditamos em um BDSM formulado como uma seita ou um gueto. Repudiamos todas as iniciativas no sentido da carnavalização ou espetaculização de nossas práticas. Como cidadãos e cidadãs livres e saudáveis, nós temos direito ao respeito.

A abordagem circense de nosso estilo de vida constitui-se em um reforço ao preconceito e a lógica de que o BDSM e seus praticantes são um gueto marginal ou doentio da sociedade. Isto simplesmente não é verdade, além de ser uma brutal agressão conservadora ao livre direito de escolher nossas próprias vivências sem sermos moralmente atacados ou tratados como grupo social portador de qualquer patologia.

Por isso o movimento deve ser aberto, arejado e freqüentado livremente por qualquer pessoa que se interesse em conhecer mais sobre o assunto. Além disso é desejável que, conforme as possibilidades e livre desejo pessoal, as pessoas assumam publicamente sua identidade sexual. Mesmos que respeitemos o tempo, os limites pessoais e as conveniências de cada praticante BDSM, é muito importante que cada vez mais pessoas confrontem o conservadorismo e saiam do anonimato. Este é um processo longo, difícil, mas muito necessário para que haja real avanço na luta por respeito em relação ao segmento.


8-) Movimento BDSM e lógicas de tomada de decisão

O movimento BDSM deve ser um espaço amplo e democrático de debate e tomada de decisões. Para tanto, seu princípio é estabelecer igualdade e ampla liberdade de expressão a seus membros. Não deve haver limitações a qualquer participante, bem como lógicas hierárquicas ou ganho de vantagem pessoal de qualquer natureza a qualquer pessoa que deseje contribuir.

As decisões devem ser fruto do debate e da construção de consensos, baseado numa organização política calcada na horizontalidade e na democracia. Além disso, o movimento não é uma organização única, reconhecendo a legitimidade de qualquer outra organização que pretenda atuar organizando o movimento e lutando por ideais similares. Não pretendemos hegemonizar, controlar ou limitar qualquer outra iniciativa que almeje organizar a minoria sexual a qual fazemos parte. Pelo contrário, essas iniciativas são positivas e contam com nosso reconhecimento e respeito.

Não incentivamos disputas e/ou tencionamos desconstruir qualquer esforço anterior ou futuro de qualquer grupo no sentido de organizar a comunidade.


9- BDSM e riscos envolvidos

Levando-se em conta de que nada é perfeitamente seguro, nem mesmo algumas práticas BDSM, defendemos a consciência dos riscos envolvidos ao invés de apregoar que tudo o que todas as pessoas fazem é absolutamente sem risco. Assim, podemos identificar e minimizar o risco através do estudo, treino, técnica e prática, por ambas as partes envolvidas na negociação. Isto não significa discordar da visão média do segmento BDSM, que apregoa práticas Sãs, Seguras e Consensuais. Pelo contrário, trata-se de, além disso, admitir e enfatizar uma preparação prévia para práticas que eventualmente constituam risco combinado entre as partes envolvidas.


Acreditamos que julgar algo “são” é muito subjetivo. Não há possibilidade de adotar um padrão universal. O que é são para uma pessoa pode não ser para outra e estaríamos no terreno da subjetividade. Objetivamente é importante enfatizar que, quaisquer que sejam as práticas adotadas, elas devem ter uma reflexão e uma clara consciência de eventuais riscos, além de uma preparação para lidar e minimizar cada um deles.

“Consensual” é a base da negociação e das relações que travamos. É a capacidade dos pares de lidar responsavelmente com os fatores de risco, de maneira dialogada. É saber diferenciar, portanto, a realidade da fantasia, e mostrar, assim, no que se está consentindo. Enfatizamos que qualquer prática irresponsável ou agressora é um desvio em relação a uma conduta BDSM saudável.


10- Por um movimento BDSM vivo, pulsante e dinâmico!

As atividades, encontros, workshops, festas e todos os eventos são muito bons para a comunidade e devem ser reforçados. Mesmo assim é importante que sejam sempre espaços abertos, sem dogmatismo, capazes de dialogar com o resto da sociedade. Nos é muito importante tirar o BDSM do gueto no Brasil e são as atividades que dão a dinâmica desse esforço e do próprio movimento.

Desejamos também que haja maior debate sobre a natureza e especificidades de nosso movimento. Deve haver a tentativa de construção de um espaço democrático para se pensar o próprio movimento e seus desafios, em níveis regionais e nacional.


A exemplo do que acontece em alguns países do mundo, devemos discutir a idéia de construir manifestações públicas específicas da comunidade dentro das paradas GLBT, que são espaços de grande abertura para a discussão das minorias sexuais no Brasil, além de momentos em que a pauta da imprensa e do país abre-se para a discussão da diversidade sexual.


Nossas atividades também precisam reforçar uma unidade e uma identidade de grupo, para além de discutir as próprias práticas. Encarar o BDSM como um movimento subcultural é também construir seu discurso, seus símbolos, sua dinâmica e sua unidade interna. As atividades possuem um papel fundamental nisso".

Texto de Hardlove
Site: www.prazeredor.blogspot.com

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