O Garoto
Estava
um calor insuportável, e eu estava tendo um dia particularmente difícil. Desempregado
há vários meses, eu havia percorrido a cidade distribuindo currículos. Só
escutei nãos. Vestia uma roupa que se pretendia sóbria, calça cáqui e camisa
social branca com listas. Com os quilos a mais que meus 45 anos começavam a me
oferecer e o calor de trinta e tantos graus em pleno Centro de São Paulo,
parecia que até mesmo minhas roupas – adquiridas em um brechó furreca e já
bastante usadas – conspiravam contra mim: a calça oprimia cruelmente minha coxa
grossa, hoje ligeiramente mais gorducha que musculosa, e a blusa outrora branca
ostentava um quadrado de suor por toda a extensão das costas e duas manchas
embaixo de meus braços que transformavam em cinza escuro o branco do tecido. Eu
caminhara por todo o Centro da cidade, necessitando urgentemente obter um novo
emprego para poder sobreviver, sustar contas atrasadas e sustentar meu filho
adolescente. Eram três horas da tarde, eu acabara de entregar meu último
currículo a uma supervisora indiferente e, em uma discreta rua de acesso ao
metrô defrontei-me com duas lanchonetes populares. Súbito, dei-me conta de que,
à exceção de um café puro com um único pão de manhã cedo, estava completamente
em jejum.
Enfiei
a mão no bolso de minha calça e encontrei algumas moedas e uma nota de pequeno
valor. Uma sobra do dinheiro que meu irmão me emprestara, já reclamando das
sucessivas vezes que eu fora obrigado a recorrer a ele. Lembrei-me também do
risco concreto de despejo que eu estava sofrendo. Olhei as duas lanchonetes. Os
salgados eram pequenos em ambas, mas com o preço oferecido eu não podia
reclamar. Olhei uma delas, as pessoas comiam sentadas em pequenos bancos gradeados
atrás e que não comportariam bem o traseiro grande de um homem adulto. Fui à
outra: não havia bancos, e as pessoas comiam em pé. Eu passara o dia inteiro
andando de um lado para o outro, as solas de meus pés ardiam como se estivessem
sobre brasas: girei nos calcanhares e retornei à primeira lanchonete. Lá, pedi
alguns salgados e sentei-me em um dos banquinhos do fundo. Eu conseguira, sim,
sentar com relativo conforto: nunca fui um homem gordo, apenas ganhara uns
quilos extras, e, ironicamente, a verdade é que a má alimentação do
desempregado aqui acabara impedindo que meu peso atingisse marcas excessivas.
Foi
quando eu devorava os salgados que os observei: eram três rapazes, dois deles
de costas para mim, e poderiam ser muito bonitos, como também é possível que
não o fossem. Mas foi o terceiro rapaz que me fascinou: era o único que estava
em pé, o único que eu podia ver de frente, o único que estava falando – os
outros dois apenas escutavam. Era um garoto gracioso e carismático, não
necessariamente magrinho, mas sim elegante, ligeiramente mais baixo que o meu
metro e oitenta e três, e certamente apenas um pouco mais velho que meu filho
de quinze anos. Destacava-se, e creio que eu posso usar essa palavra no sentido
literal, o nariz inacreditavelmente grande, dos maiores que eu já havia visto. Do
distante banco do fundo, eu não entendia o que ele falava, apenas escutava o
som de sua voz: uma voz argentina, típica de rapaz prestes a ingressar na casa
dos vinte anos, que começou a mudar mas ainda não mudou de todo. Curiosamente,
quando o garoto levantou a cabeça para emitir uma risada, durante sua
narrativa, pude observar bem seu pomo de adão: grande e pontiagudo como o de um
adulto. Concentrei minha visão em seu pomo até perceber que o garoto me
flagrara olhando para ele. Desviamos concomitantemente nossos olhares – ou
teria sido eu quem desviara o meu primeiro? De qualquer forma, voltei a
concentrar-me em meus salgados – mas, sem me dar conta, um breve instante
depois eu novamente contemplava a beleza do rapaz, sua graciosidade, sua
presença, seu gogó, o sombreado no rosto que revelava ser bem cerrada sua barba.
De
certa forma eu precisava de um colírio que me confortasse naquele momento,
posto que minha situação econômico-financeira era desesperadora: sem emprego,
sem dinheiro, sem condições de me manter ou de sustentar meu filho – de cuja
mãe eu me separara há mais de dez anos, ou, melhor dizendo, que se separara de
mim quando me flagrara na cama com outro homem, em um dia em que eu pensara que
ela, a hoje poderosa empresária, estaria em um chá de panela (na verdade, uma
despedida de solteira) na casa da melhor amiga, mas que voltara para casa
porque esquecera o presente. Poder assumir de vez, ao menos para mim, a minha
homossexualidade, foi o melhor aspecto dessa situação, embora nesse momento
isso fosse o que menos me preocupasse: como ignorar meu saldo bancário zerado,
meu filho reclamando do tênis novo que não veio no aniversário e meu irmão rico
– e sua esposa – resmungando dos meus sucessivos pedidos de empréstimo?
A
verdade é que, contemplando a beleza daquele garoto, eu me esquecia
parcialmente de tudo isso. O garoto era lindo demais, seu sorriso revelava
dentes grandes e amplos, se não puramente brancos certamente dotados de um
amarelado selvagem que me fascinava ainda mais: havia um quê de rusticidade
naquele sorriso. Seus olhos negros traziam cílios e sobrancelhas negras e
espessas, e os sugestivos pelos de barba que se espalhavam pelo queixo, pelo
buço e pelas laterais do rosto eram quase um ponto de apoio para minha retina. Eu
o contemplava avidamente, desligado do resto do mundo, meu pau já ardia dentro
de minha calça, quando mais uma vez nossos olhares se cruzaram, sua fisionomia
estagnando no meio sorriso que se iniciava. Mais uma vez, desviei o olhar.
Voltei a ocupar-me de meus problemas e de mastigar meu último salgado. Observei
o garoto e seus dois amigos colocarem seus pratinhos vazios no balcão e saírem
da lanchonete. Dando a última mordida no salgado final, ainda fiquei mais
alguns segundos sentado no banco, meio que voltando a me lembrar de meus
próprios problemas. Estava muito quente lá fora. Passei a mão na minha testa,
retirando de minha calvície acentuada algumas gotas reticentes de suor. A
realidade de que meu cabelo rareava podia ser vista como um charme para alguns,
mas, para mim, era um constrangimento que me incomodava. Amargamente, lembrei
do cabeludo que fora quando eu tinha a idade do garoto que acabara de sair. Por
que lembrar-me dele agora, assim, se nunca mais irei vê-lo? Sem perceber,
lamentei com um esgar a constatação que acabara de fazer. Suspirando, peguei
minha pasta vazia, de onde os currículos se diluíram no decorrer do dia,
coloquei-a em meu sovaco suado e saí da lanchonete.
O
garoto estava encostado na parede, do lado de fora. Sem os amigos. Sozinho.
–
Tem horas aí, tio?
A
pergunta era nitidamente um pretexto para me abordar. Na lanchonete, observei
nitidamente ele tinha um relógio no pulso – o qual havia tirado, obviamente
para justificar a pergunta.
Com
um sorrisinho maroto que lhe indicava haver compreendido seu intuito, eu lhe
informei as horas. Ele meneou levemente a cabeça, sugerindo entendimento, e,
com outro sorriso, este mais suave, apontou na direção oposta a qual eu
demonstrara ir.
–
Vamos para lá? – perante a minha imobilidade, que sua abordagem tão direta me causara,
o garoto acrescentou:
–
Você me curtiu, né? Eu saquei.
Era
verdade e ele sabia disso. E, afinal, porque eu tentaria negar? Instintivamente,
eu o segui. Ele começou a puxar conversa, sua voz agreste me encantando, e perguntou
o que eu fazia da vida. A pergunta foi o pretexto ideal para que eu começasse a
desabafar com ele, e – volta e meia lhe pedindo “mil desculpas por alugar-lhe
os ouvidos” – contei ao garoto toda a história da minha vida, meu nome, minha
separação, minha situação financeira, tudo.
O
garoto estagnou no meio da rua, olhou para mim e disse:
–
É difícil, né, cara? Viver é difícil.
Havia
uma conotação sarcástica no fato de um garoto que revelara ter dezenove anos
quando eu lhe perguntei se era maior de idade dizer isso a um homem como eu
que, ferrado ou não, tinha quarenta e cinco anos. Mas eu nada disse, apenas
concordei com a cabeça.
–
Tá a fim de curtir um pouco?
Nós
havíamos parado bem em frente à escadaria de um prédio rastaquera. Ao formular
a pergunta, ele apontou para a entrada do prédio e disse que morava lá.
–
Tá a fim de curtir? – ele repetiu.
Eu
estava.
Entramos
no prédio. Ele imediatamente pegou forte no meu pau, estendendo maliciosamente
o toque para baixo até atingir em cheio minhas bolas com uma pegada forte e
agressiva. Eu gostei do toque. Suas mãos eram compridas, seus dedos eram longos
e finos, e o garoto usava um anel de prata grosso e pesado, masculino por
excelência, em seu dedo mínimo.
Subimos
um lance de escada e, após este, entramos em um pequeno elevador. O prédio era surpreendentemente
alto para sua arquitetura, possuía catorze andares. O garoto morava no último.
Passamos todo o percurso do elevador nos beijando, ele abriu os botões de minha
camisa suada e acariciou meu peito cabeludo. Eu levantei a t-shirt azul dele e
fiquei alegremente surpreso em verificar que o tórax dele era uma verdadeira
floresta, talvez três vezes mais cabeludo que o meu.
Descemos
do elevador de mãos dadas. Eu sorri. Ele soltou minha mão para pegar a chave,
e, ao abrir a porta, simpaticamente se afastou para que eu entrasse primeiro.
O
apartamento do garoto era, para dizer o mínimo, original. Apesar do prédio ser
inteiramente remediado e o local não passar de um cubículo sem divisórias, aquele
recinto era quase futurista: não havia mobília alguma, exceto uma cama flexível
que ficava presa à parede por um grosso cadeado. O chão era inteiramente
encarpetado com um espesso tapete cinza escuro, assim como as paredes eram
revestidas de um tapume da mesma cor, apenas ligeiramente mais claro, cujo
material eu não identificara. A janela estava fechada, posto que o ar
condicionado na última potência refrescava todo o ambiente. Um pequeno
compartimento igualmente trancado a cadeado – exceto por um vidro refratário de
coloração escura – revelava ser a cozinha, e uma pequena porta no canto só
poderia ser o banheiro do garoto.
Enquanto
eu contemplava o apartamento quase futurista, o garoto me abraçou por trás e me
beijou na nuca. Virei-me e nos beijamos nos lábios. Que alívio, que descarrego!
Desde que minha situação de desempregado teve início que eu estava sem um homem
nos braços – e ele parecia precisar de um macho tanto como eu.
O
garoto tirou sua camisa – como ele era peludo, que delícia, meu Deus! Em
seguida, reiniciou a tarefa de desabotoar minha blusa e a jogou longe. Nos
beijamos forte, abraçados, nossos torsos nus colados um no outro. Meu pau,
ereto dentro de minha calça social apertada, já latejava de tesão. Ele começou
a beijar meu ombro, meu colo, meu sovaco. E torceu o nariz.
–
Vamos tomar um banho primeiro.
Realmente,
meu desodorante já havia vencido há muito tempo.
Com
um sorriso amarelo, nitidamente movido pelo comentário – verdadeiro, mas sempre
constrangedor – que fizera sobre meu cheiro, apressei-me em tirar o resto de minha
roupa, despindo-me da cintura para baixo – e fui muito bem auxiliado: com
carinho, o garoto tirou meu sapato, minha meia, e finalmente abriu meu zíper e
tirou minha calça. Meu pau, que tenho orgulho de dizer que sempre foi exageradamente
grande, libertou-se da cueca ficando em posição horizontal, suplicando por um
carinho másculo. O garoto também ficou nu, e segurou meu pau. Minha ereção
parecia que ia me fazer explodir. Ele sorriu provocantemente para mim, aqueles
dentes grandes, amarelos, lindos. Eu também peguei no pau dele, duro como uma
pedra, grosso e tão grande quanto o meu. Ficamos acariciando um o pênis do
outro, fitando-nos maliciosamente. Dois machos com duas jebas fenomenais no
meio das pernas, em momento de total entrega um ao outro. Eu o beijei, ele me
beijou e, olhando para baixo, observei que aquele garoto podia ser novo, mas o
saco dele era, provavelmente, o maior que eu já havia visto na vida – maior que
uma pera, sem dúvida. Intencionalmente encostando o nariz em meu sovaco
fedorento, ele me puxou pelo pau e, sorrindo para mim, abriu a porta do pequeno
compartimento no canto, e que não estava trancada. Como eu supusera, era
realmente o banheiro. Inteiramente nus, entramos nele e fomos imediatamente
para o box. Nossos paus continuavam duros, e eu adorava amar debaixo do
chuveiro. A água estava morna, gostosa. Como era bom um banho refrescante, com
um homem gostoso, naquele final de tarde. O garoto me beijava, me acariciava, e
eu já começava a imaginar o que viria em seguida. Súbito, ele resmungou.
–
Droga.
E
saiu do box, enrolando-se em uma toalha.
–
O telefone. Eu já volto. – justificou, com tom aborrecido, saindo apressado do
banheiro. Lamentei esta interrupção, é claro, mas fazer o quê, não é?
Claro
que, suado do jeito que eu estava, havia uma coisa que eu poderia fazer, sim, e
o fiz com vontade: concentrei-me naquele banho delicioso, sentindo a água
quentinha sobre meu corpo, esfregando em mim o sabonete finíssimo que o garoto
tinha.
O
garoto. Ele estava demorando no telefone. Comecei a ficar preocupado, teria ele
recebido alguma noticia ruim? Em uma fase difícil da minha vida, ele estava me
dando uma grande alegria, era um menino de dezenove anos que morava sozinho em
São Paulo. Decidi ir falar com ele. Fechei a torneira e saí do box.
Instintivamente, dirigi-me ao suporte no qual ele pegara a toalha. Não havia
outra. Senti-me um tolo em procurar esta segunda toalha, porque é obvio que um
garoto que mora sozinho teria apenas uma em seu suporte. Porém, eu estava
molhado, o ar condicionado da casa gerava um vento frio... olhei ao redor,
procurando algo para me cobrir. Não havia nada. Teimosamente, ainda tornei a
olhar nos mesmos lugares, com uma esperança vã de encontrar uma pequena toalha
de rosto que poderia ter me passado desapercebida. Não havia nada. Nem mesmo um
par de chinelos que eu pudesse calçar. Voltei a pensar no garoto,
preocupando-me com ele: meu parceiro poderia estar com algum problema, e pelo
menos palavras de solidariedade eu poderia lhe oferecer. Completamente pelado,
saí do banheiro.
O
apartamento estava inteiramente vazio. O garoto havia ido embora, levando toda
a minha roupa.
–
Alô? Ei?
Não
havia ninguém. O que era óbvio, em um pequeno cubículo sem mobília. Aliás,
observando melhor aquelas paredes, pude entender: aquele revestimento e o
carpete espesso tornavam o apartamento totalmente à prova de som. Dirigi-me à
janela, tentando abri-la. O vidro estava trancado e um olhar arguto indicava
que era à prova de arrombamento. E, mesmo que não o fosse, não havia objeto
algum que me permitisse quebrá-lo. Aproximei-me da janela: verifiquei, então,
que, de certa forma esta não dava acesso direto à rua, ao contrário – eu agora podia
nitidamente observar que a construção do prédio o inseria como que recolhido em
relação à calçada e aos demais imóveis – o prédio era “para dentro”, podia-se
dizer assim, e a distância entre as janelas e a calçada impedia que qualquer
pessoa que passasse lá fora visualizasse o que ocorria no interior do imóvel –
e, além de tudo, estávamos no décimo quarto andar.
Comecei
a me desesperar. Era nítido que eu fora vítima de um sequestro. Mas, meu, eu
estava sem dinheiro algum, e ele sabia disso, posto que lhe contara toda a
minha situação. Não fazia sentido querer me raptar. O que o garoto poderia
querer de mim? Eu mencionara meu irmão, Mas não cheguei a mencionar com clareza
o fato de que ele era rico, não lhe dei nenhum contato, involuntariamente ou
não, e tampouco lhe dissera seu nome – só falei “meu irmão”, em todas as vezes
que me referi a ele.
Sem
opções, comecei a examinar o apartamento. Tudo começava a ficar nítido: carpete
e fórmica impediam que qualquer som emitido no apartamento saísse de seu
interior. A janela era ampla e sem cortinas, mas estava trancada e não havia
como arrombá-la; além disso, o prédio ficava para dentro em relação à linha da
calçada – e mais um detalhe ficava nítido a meus olhos: o vidro escuro impedia
que, mesmo que alguém na rua levantasse os olhos e tentasse – hipótese
fantasiosa e absurda! – visualizar a janela do décimo quarto andar de um prédio
não tão próximo da calçada assim, essa pessoa não conseguiria enxergar o
interior do apartamento. Tentei forçar a cama, colocando-a na horizontal;
contudo, o cadeado que a prendia à parede era tão pesado que tal prática
revelou ser impossível. Num gesto infantil, tentei abrir a porta da rua –
estava trancada, óbvio. Ri: eu estava inteiramente nu. Mas digo uma coisa:
nessa situação, se a porta estivesse aberta, eu seria capaz de sair correndo
pelas escadarias do prédio. Mesmo pelado.
Trancado
e sem roupa, encostei-me a uma das paredes. O vento frio gerado pelo ar
condicionado congelava meu corpo nu e ainda molhado. Com amargura, lembrei-me
do calor que fazia lá fora, e de como eu o lamentara. Olhei em direção à
janela. O mundo parecia ao mesmo tempo tão próximo e tão distante... amaldiçoei
um fato que agora me parecia óbvio: como o garoto poderia ter escutado um
telefone que eu não escutara, estando, assim como eu, dentro de um box fechado,
debaixo de um chuveiro, sendo que as portas do box e o barulho da água quente impediam
que qualquer outro som fosse escutado? Deus, como isso era óbvio! Era óbvio
agora, claro.
Nesse
momento, de uma certa forma, eu finalmente entendi a minha situação, e me
desesperei. Soltei um berro de revolta, insegurança, indignação e acima de tudo
de medo. De muito medo.
Autor: Carlos Dunham
Autor: Carlos Dunham
Nenhum comentário:
Postar um comentário